Pintura do saudoso Cees Bantzinger (Amstelveen).
Homenagem à sua família Anne-Rose Bantzinger e Jetty Paerl que não vejo há muitos anos.
Camila morreu num Domingo de Sol, às 6 da manhã.
A noite chegava mais cedo, sem aviso, devido à tempestade. O vento fazia tremer os candeeiros da cidade dando um ar fantasmagórico às ruas e grossas pingas de chuva toldavam a visão de Camila que, apressadamente, se dirigia para casa. Sentia-se cansada pelo dia fatigante no trabalho e pela ideia de ter ainda que arrumar os despojos da saída, à pressa, de manhã, por ter que pensar, cozinhar e servir o jantar, mesmo sem apetite, por ter que pedir ajuda ao marido, que sempre tinha que pedir, por ter passado mais um dia, entre muitos, igual. Cansada sobretudo pelo sonho que tarda a realizar-se; o reconhecimento da sua competência profissional, a subida na carreira, o respeito dos colegas, dos superiores, da família. Mas o sonho comanda a vida e tinha que, como sempre, continuar a sonhar. Camila enfrentava todos os dias o desânimo e lutava com forças que desconhecia de onde vinham. Não fosse achar que não se sentia bem, mal vislumbrando quem se cruzava com ela e andando na rua como que um fantasma, teria erguido a cabeça e até rido da rotina como sempre o fazia.
Estranhamente, ao meter a chave à porta, esta abriu-se como que por magia e Camila sentiu-se docemente empurrada na direcção da lareira, já acesa, crepitante. A música suave, a sala na semi-obscuridade, a temperatura aconchegante, os copos de vinho a amornar junto ao fogo, a presença do marido junto a si, encheram-na de ternura por esse quadro inesperado numa noite que pensava igual a outras. Sentou-se no tapete, no chão, pegou num dos copos de vinho, Carlos no outro, e bebeu um largo golo que lhe aqueceu a alma e lhe embalou o coração. Carlos, adivinhando-lhe o desgaste e a carência, abraçou-a por trás e, docemente, deixou os lábios no pescoço dela, demoradamente, carinhosamente. Camila sentiu-se no céu, não deixando que a estranheza daquele acto, nada próprio do marido, manchasse um momento como esse. De mansinho virou-se para ele, era urgente chegar-lhe, urgente retribuir-lhe. De súbito, não conseguiu ver-lhe a face _ a visão turva do cansaço, da chuva, do vinho. Mas mais nada importava; sentiu-lhe os dedos gulosos, os lábios macios explorando cada canto do seu corpo, a roupa a rasgar, o hálito quente nos seus seios, a explosão de mil sóis dentro de si.
Ficaram deitados e abraçados naquele doce esgotamento depois do amor, frente à lareira, olhando como que atraídos o fogo a crepitar.
O Sol tinha nascido quando Camila acordou, olhou as horas, 6 da manhã. A seu lado Carlos dormia, de costas para ela. Pensou levantar-se mas a recordação do sonho que tivera, fê-la mudar de ideias. Definitivamente, havia muitos anos que não tinha um sonho tão bom e quanto mais dormisse mais possibilidades teria de voltar a sonhá-lo. Decidiu _«vou dormir para sempre» _e morreu.
8 comentários:
Belíssima história...
Obrigado 100 sentidos.
Beijinho miga
Grande post.
Óptimo blogue.
Bem, June!
Keep up the good work ;)
Bjs, VR
Não há vida sem o sonho ...!
Excelente!
Bjks da M&M & Cª!
Bom, e quem... ouve! ia dizer: e quem não quer morrer assim?"
Eu gosto de boa e simples "literatura".
A este respeito há-a assim e há-a assim-assim.
As fotos? As minhas? As que estão no blog? Usa-as e abusa? Nunca te deste ao trabalho de ler a minha introdução à fotografia? olha fica aqui para te entreteres.
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A fotografia, tanto quanto eu a quero disponível, é o factor de descontracção que possuo mais à mão. Mas nunca me subjugará a conceitos preestabelecidos ou a pseudo-intelectualísmos bacocos.
A amplitude do meu gosto pela fotografia leva-me a gostar de um elevado números de autores. Eu chamo a isto gostar de fotografia independente.
Interessante!!!
"o sonho comanda a vida", como diz o poeta. «Por tudo e por nada»,há sempre alguém que resiste...e, num sonho eterno, em quem a morte não terá poder, hão-de morrer, também, os pressupostos dos «pesadelos».
Abraço
Paulo
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